Lembro bem da primeira vez que fiz um trabalho de assessoria de imprensa. Precisava divulgar nacionalmente um site feito por amigos. Percorri sites de jornais do país, portais e inclusive comprei os jornais da minha cidade buscando os espaços editoriais e os contatos dos repórteres e colunistas que poderiam explorar melhor aquele conteúdo. Sem ferramentas adequadas, disparava o meu release individualmente e depois comemorava ao ver as notas divulgando o site saindo na imprensa.
Hoje, um assessor de comunicação/marqueteiro tem uma ampla gama de ferramentas para emplacar as notícias de seus clientes: além dos tradicionais press-releases (que muitas vezes são reproduzidos na íntegra pela imprensa, inclusive por grandes veículos de comunicação), ele pode buscar a disseminação da informação atingindo milhões de pessoas pela internet, através de redes sociais, sites e portais, weblogs e fóruns.
Ele pode comprar um post num blog (os chamados publieditoriais), ou ele pode simplesmente dar um presentinho pro blogueiro, que ficará muito grato e divulgará sua informação. Mas ele também pode emplacar sua notícia gastando ainda menos, se oferecer pro blogueiro aquilo que ele mais precisa: cliques.
Acredite, estou mentindo – confissões de um manipulador das mídias consegue captar com exatidão o funcionamento da blogosfera e por extensão da monetização da informação na rede e seus desdobramentos. E só por isto ele já merece a leitura. Mas esta é só a ponta do iceberg: Holiday percebeu que os blogueiros, em sua ânsia pelos cliques que tornarão seu negócio rentável, estão dispostos a olhar pro lado e publicar notícias não checadas, de fonte duvidosa, imprecisas, ou mesmas falsas. Afinal, nem todos os blogs são escritos por jornalistas ou mantidos por empresas de comunicação – e mesmo estes cada vez mais estão sacrificando a ética profissional e a precisão em prol da velocidade e do lucro.
O que Ryan Holiday nos conta em Acredite, estou mentindo não é nenhuma novidade. Nós aqui no Brasil já temos uma boa quota de cases de blogueiros espertos, que conseguiram viralizar conteúdos falsos e passar a pauta adiante, fazendo a mentira ser reproduzida pela grande mídia.
No livro Holiday conta, arrependido, algumas de suas traquinagens: difamar seu próprio cliente, Tucker Max, criando o buzz que aumentou a publicidade de seu livro, Espero que Sirvam Cerveja no Inferno; fazer de conta que é um funcionário descontente da marca de roupas American Apparel, vazando imagens de campanhas publicitárias que não poderiam ser publicadas, mas que mesmo assim ganharam a mídia gratuitamente via blogs; editar entradas da Wikipedia, garantindo a disseminação de informações úteis para seu cliente; usar nomes falsos em fóruns e sistemas de comentários de blogs, inflamando artificialmente discussões; e por aí vai.
Holiday observa ainda muito bem que a notícia se reproduz. Ele muitas vezes plantava uma informação em um blog regional. Em poucos dias via a informação virar noticia em um jornal ou portal de abrangência estadual, depois ganhar a TV, escalando para até, com alguma sorte, ser veiculada em rede nacional. Cada veiculo deveria ter seu próprio critério de apuração. O problema do sistema da internet é que um veículo costuma se apoiar na apuração do outro, que se apoia em outro, e assim acabam disseminando e perpetuando a imprecisão um do outro.
“Links online se parecem com citações, mas raramente são. Através de atribuições inconsistentes, blogs são capazes de afirmar coisas absurdamente fantásticas que se espalham bem e geram comentários” – Ryan Holiday (página 161)
O problema é que o sistema que permite a divulgação e a disseminação de imprecisões pode permitir coisas muito piores. Por exemplo, reproduzir informações infundadas. Ryan vai narrar uma história de como isto se virou contra ele: quando a American Apparel, que gozava de bom retorno de mídia de blogs, acabou se tornando alvo de denúncias de maquiar relatórios financeiros. Mostrará ainda blogs tentando destruir reputações – seja de um programa de humor premiado e conceituado como o The Daily Show – e sendo bem sucedidos isto – no afastamento da funcionário do Ministério da Agricultura Shirley Sherrod, falsamente acusada de racismo.
A imagem, expressa graficamente no livro, é que os blogs se tornaram monstros, alimentados pelos centavos da publicidade que caem a cada impressão de banner, dominando a internet de conteúdo ruim e não raras vezes mal intencionado.
Holiday faz do livro um constante mea culpa – se lamentando do que fez, chateado das trapaças que patrocinou. Ele tenta posar de herói e esta é a parte chata da obra, que merece ser descartada. O alerta é mais importante que a agenda de seu mensageiro.
Li o livro de Ryan Holiday pouco depois das eleições de 2014 e ele realmente me provocou um grande desconforto profissional. A carapuça serviu. Eu também me senti culpado.
Nós jornalistas publicamos inverdades como nunca nesta eleição (conscientemente ou não). Por exemplo, eu gerei muita audiência para o site da minha empresa reproduzindo aquelas pesquisas cascatas da IstoÉ/Sensus e Veritá que davam a vitória na eleição pro Aécio Neves. Verdade seja dita, nos meus textos eu sempre alertava que os dados não correspondiam aos que diziam os principais institutos de pesquisa – tentando alertar que aquele trabalho de pesquisa poderia não ser sério. Mas isto Ryan Holiday também observou: o que está lá nos últimos parágrafos pouco importa, a informação que fixa, que dissemina, que viraliza, é a que está no titulo da postagem.
Então, se eu estou me sentindo mal, e Holiday também, o que estará pensando o publisher da revista Veja?
O que vivemos no Brasil em 2014 não foi só uma eleição com muita coisa em jogo. Tivemos exemplos claríssimos e deploráveis de tentativas de manipulação da eleição pela mídia. Seria simples, se fosse problema do veículo A ou B. O problema é que tudo se misturou com o cenário acima: uma imprensa em crise, precisando monetizar; fronteiras indefinidas do que é jornalismo e o que não é na internet; leitores tendendo a acreditar em tudo que era compartilhado; e vários Ryan Holidays agindo nas sombras, tentando fazer valer seu ponto de vista. A crise de credibilidade não atinge só a A ou B, atinge a todos. O problema está na mesa.
Ficha técnica
Acredite, estou mentindo – confissões de um manipulador das mídias
Ryan Holiday
Companhia Editora Nacional
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